quarta-feira, 28 de outubro de 2009

NUNCA DIGA EU TE AMO.

Ele havia mudado a alguns meses para o bairro mas nunca havia notado aquela pequena padaria com fachada de madeira escura que fazia pães especiais e pouco convencionais. Entrou timidamente pela primeira vez e foi atendido de forma desinteressada por uma mulher jovem que não ligou muito prá ele. A variedade de pães não era grande mas nada era igual aos produtos dos concorrentes, o padeiro era o próprio dono do estabelecimento e ele havia feito alguns cursos de especialização fora do país, a atendente era sua mulher que trabalhava em dupla jornada ali e em casa e por isso não tinha energia para ser simpática, mas não era alguém desagradável. Inevitavelmente, no entanto, ela aprendeu sobre os gostos do novo cliente e ele passou a receber um atendimento digamos: falicitador. Passou também a receber sugestões de consumo conforme o padeiro/dono/marido ia incrementando a variedade.
Um ocasião o padeiro saiu prá fazer mais um curso e do nada, vendo-se livre dele, a esposa desabafou com o cliente, que não era feliz. Ele ouviu, opinou e ela passou a gostar de conversar com ele. Os assuntos passaram a ser os mais variados e um dia ele disse a ela, já tendo na mira o marido amassando o pão lá no fundo que a amava. Ela corou e gostou de saber que alguém se interessava por ela, mas não deixou passar disso. Ele era desimpedido e isso era tentação demais. Mas o tempo, alias muito tempo foi passando, e a situação em nada se alterou. Os sentimentos pareciam que as vezes esfriavam e algumas vezes enlouqueciam. Mas o platonismo imperava firme e alem de pães, trocos, olhares e desejos proibidos nada existia.
Mas em algumas ocasiões ocorreram possibilidades de em encontros casuais conversarem abertamente sobre sentimentos e possibilidades e ele, sempre se atirando muito mais na aventura, desejava que ela largasse tudo e fosse com ele descobrir o mundo. Mas ela tinha um senso de responsabilidade muito profundo e preservava não só os sentimentos dela como os de todos que a ela estavam ligados e de uma forma amiga, suave e triste dizia que nada era possível.
Ele enlouquecia a cada nova investida, mas um dia conversando com um estranho foi aconselhado a entender o que acontecia de verdade. Dizia o estranho que ele não gostava daquela mulher, mas que gostava da aventura da conquista daquela mulher, dos riscos, do ufanismo de corteja-la diante do ocupado marido sem que o ingênuo desse conta. Mas também que ele não era o dono daquela situação que era antes de tudo um escravo daquilo tudo. Ele passou então a refletir sobre qual era precisamente o sentimento que o envolvia e concluiu que gostava mesmo era da conquista. E que aquilo estava se tornando cada vez mais prazeroso na medida em que ia ficando cada vez mais difícil. Seus dias eram de treva e luz, mas ele não identificava naquilo paixão, era antes, gosto por algum desafio. Mas isso fazia com que ele jogasse sobre ela um monte de atenções e ela se derretia por isso.
Um dia, noutro encontro casual, ele declarou sua paixão por ela.
Ela não estava num bom momento e sentiu a força daquilo.
Confusa buscou as palavras certas.
E as únicas que lhe vieram a mente foram as mais sinceras e verdadeiras que tinha, e disse:
- Eu te amo!
Ele sorriu, viu que havia conseguido, deu-lhe as costas e nunca mais ela o viu.

quinta-feira, 1 de outubro de 2009

OBRIGADO DOUTOR

Meu sonho sempre foi ser médico.
Embora na vida real tenha horror a médicos.
Consegui um avental de encarregado de setor de manutenção de veículos da marca Mitisubishi, bem limpo, e fui invadindo um enorme hospital publico.
Já na porta o segurança de terno preto me olhou e fez sinal para eu parar. Eu fui furioso na direção dele e disse:
-Como você tem a incompetência de estar trabalhando sem luvas descartáveis e mascara? Eu não te suspendo porque estamos com problemas na escala...
E fui entrando com cara de quem não estava gostando. Mas tinha ainda o problema da logomarca da Mitisubishi prá encobrir. Vi um médico também de roupa cinza hiper folgada vagando displicente cutucando o nariz pelo corredor e garfei o cara:
- Seu porco, dá aqui este crachá... vai prá casa agora, amanhã falamos!
Coloquei o crachá. Segui pelo corredor cheio de macas, uma vergonha.
Do bolso de meu avental retirei um pincel atomico vermelho e na testa de um velho que dormia numa maca escrevi OBITO.
Chamei um segurança com cara de sono e uniforme de vigilante de banco e falei:
-Leve agora para o necrotério.
Duas macas adiante outro paciente dormia profundamente. Despertei-o com tapinhas na cara e quando ele começou a acordar eu disse:
- Graças a Deus consegui ressuscitar você... você tem muita sorte, ficou mais de 1 hora morto!
Ele soltou lágrimas e disse:
-Obrigado Doutor!
Na testa deste escrevi OK, LIBERADO.
Avancei por outro corredor e vi que tinha jeito prá coisa, estava começando a gostar.
Vinha em minha direção uma enfermeira com cara de sonsa empurrando desmaseladamente um paciente numa cadeira de rodas. Parei-a.
- Onde você pensa que vai?
Ela tentou responder...
-Você sabia que eu posso acusa-la de tentativa de sequestro?
Ela começou a chorar compulsivamente.
Escrevi na testa do paciente: ACORRENTAR.
- Leve este paciente para o setor de manutenção e mande soldar correntes na cadeira de rodas para que nunca mais ninguém tente sequestra-lo! E prenda as correntes em algo pesado.
O paciente suava muito e a tinta começou a escorrer pelo nariz.
- Rápido... não vê que ele esta com hemorragia... vai, vai, vai...
E o paciente dizia ao longe:
- Obrigado doutor.
Na porta onde estava uma plaqueta que dizia algo sobre cardiologia não sei que lá, não lembro, risquei e escrevi: TRANSFERIDO PARA O 18º ANDAR. sala 1817
Sentei numa cadeira entre pessoas que estavam esperando e quando uma funcionária de uniforme azul chegou e perguntou para onde havia sido mudado a sala de exames todos responderam:
- 18º andar.
Ela saiu confusa falando baixinho:
- Mas este prédio só tem 4 andares.
Minha atuação já devia estar fazendo sucesso pois notei que havia algum movimento mais nervoso pelos corredores.
Entrei num elevador muito grande, nunca tinha entrado num tão grande assim.
Havia um sujeito mórbido levando um cadáver.
Olhei prá ele e dei um pequeno sorriso.
Ele permaneceu carrancudo.
Falei:
- Já tomou café?
-Ainda não.
-Chato ?
- O quê?
- Até essa hora sem café...
- E dai?
- Dai que você se quiser pode ir tomar café que eu cuido do presunto.
- Tá bom.
Ele saiu do elevador e eu desci com o elevador até o andar do estacionamento.
Andei uns 30 metros entre os carros e havia um carro lindo, preto, importado com bagageiro.
Tentei colocar o presunto no bagageiro mas o presunto era muito pesado.
Vi então um pick-up com lona de proteção na caçamba e achei que estava mais de acordo com os procedimentos médicos hospitalares. Meti o presunto na caçamba e fechei a lona.
De volta ao prédio, subi até a UTI, tava animado o negócio lá, todo mundo respirando por aparelhinho, bip prá lá, pipipi prá cá.
Fiquei uma meia hora acertando os botoezinhos, igualei todo mundo. Fiz lindos desenhos nas testas de todos. Nuns fiz corações, noutros estrelinhas, não desconsiderei ninguém.
Uma senhora bem fortinha me chamou com um sinal.
Cheguei bem perto, ela me perguntou:
-Como eu estou DR.?
Eu rsepondi em tom tranquilizador.
- A senhora esta deitada.
Resolvi que estava com fome e fui jantar no refeitório.
Entrei e o lugar estava mais animado que a UTI.
O assunto era a tentativa de sequestro do paciente agora acorrentado por ordem médica.
Fiquei sinceramente feliz de saber que meus procedimentos haviam surtido resultado.
Nisso vi uma sombra, mas podia ser um rato, não tive duvida, gritei:
- Um rato, ali, ali, ali....
Maior correria, desmaios, um tropeu danado até segurança apareceu no lugar.
Nada comi e voltei ao trabalho.
Encontrei mais pacientes e fiz anotações nas testas, tipo:
NECROTÉRIO
ESTREMA UNÇÃO
LIBERADO
JÁ ERA
AI MEU DEUS
SÓ UM MILAGRE
FINGIDO
NÃO DOÍ TANTO ASSIM
TRIPLICAR A DOSE
PODE TIRAR O GESSO
ESBANJANDO SAÚDE
LAVAGEM INTESTINAL
DEPILAÇÃO RADICAL
MUDANÇA DE SEXO
FORA DAQUI
IMPOSTOR
Depois de muito trabalho resolvi descansar, fui tirar um soninho dentro do tomografo.
Acordei na cadeia.
Pô, ninguém valoriza a profissão de médico.