quarta-feira, 26 de setembro de 2012

O RESGATE DO SOLDADO RAIÃO

- Coloca logo o filme cara, que porra você tá fazendo?
- Tô limpando o disco, calma, ele sempre trava na mesma parte por causa daquela meleca que grudou e não sai mais...
- Coloca logo o filme, na hora que travar avança que destrava...
Todos reunidos no minusculo quarto prá ver pela vigésima vez o mesmo filme, guerra, tiros, bombas, braços arrancados, o filme começa com meia hora de muito sangue e morte, depois vira um filme bem funeral e todos choravam disfarçados a sorte dos irmãos que convocados foram morrendo um a um...
- Porra esse soldado Raião é um puta cara azarado...
- Azarado por que?
- Pô no melhor da guerra os caras vão lá buscar ele prá entregar prá mamãezinha dele. Puta viadagem...
- Cara, você já viu esse filme vinte vezes e não entendeu ainda... ai caralho!
- Que foi?
- Ai meu ca-ra-lho...
- Fala logo, o quê foi?
- Ai meu ca-ce-te... esquecemos do Eugênio, ele esta trancado lá no banheiro daqueles povos desde ontem a tarde, temos que ir resgata-lo...
- Ai, fudeu...
A tarefa era quase impossível, achar novamente a casa onde morava a parentalhada mau encarada que os havia recebido com tanta indiferença, julgo eu.
- Precisamos do Tio Zé...
- Vai dar não... o tio tá com um febrão de lascar, não tem a menor condição.
- Vamos dar condição, cata lá a novalgina, vamos entuxar novalgina nele até a febre baixar.
- Vai dar não... o tio tá falando coisa com coisa não, acho que a febre tá muito forte.
- É caso de vida ou morte... vamos encher ele de novalgina e colocar no carro, fala que vamos levar ele no hospital...
- Ele tá muito doidão, tá fervendo.
Arrastamos o tio Zé prá dentro do 147 e na primeira esquina os vidros já estavam todos embaçados por dentro de tanto que ele suava...
- Porra, dá uma flanela ai, tem que passar alguma coisa nesse vidro não tou vendo nada...
- Tio Zé no banco da frente era um tremendo obstáculo, mas alguém saltou por cima dele e passou a manga da blusa no para brisa, ficou uma merda, piorou muito, mas a vida avança entre acertos e erros, esse erro só veio a contribuir para retardar o avanço da vida.
- Tio, o senhor lembra o caminho?
- Ãh, ãh?
- Tio, o caminho da casa dos primos onde fomos ontem, esquecemos o Eugênio lá, precisamos voltar lá e pegar ele...
- Ãh, vocês não ia ver o filme? ...eu estou com sono, cansado, alguém fechou o gás?
- Tio, procura concentrar, lembrar pelo menos o nome do bairro...
- Pirituba, isso, Pirituba eu sei que não é...
- Tá tio, tudo bem Pirituba não é... então qual o nome do bairro?
- Vocês acabaram de ver o filme?
- Já tio, foi por causa do filme que nós lembramos do Eugênio...
- Ãh, o Eugênio tá trabalhando no cinema agora? Ele é lanterninha? Quanto orgulho do Eugênio...
- Não tio, fala o nome do bairro tio, prá que lado eu vou tio?
- Pô se é cinema deve ser Hollywood, só pode ser Hollywood...
- Caralho tio, não tem bairro com esse nome em São Paulo, tio concentra... dá mais novalgina prá ele...
- Ai merda, quem espirou essa coisa amarga na minha boca, que liberdade é essa que vocês estão tomando comigo... eu vou vomitar, para a ambulância...
- Não vomita não tio, fala o nome do bairro...
- Jaçanã!
- Tem certeza tio?
- Jaçanã!
- Meu, prá que lado fica o Jaçanã... alguém faz alguma ideia?
Silencio mortal no banco de trás... de repente todos falam ao mesmo tempo...
Um mar de informações desencontradas, palavrões e safanões...
O jeito foi pedir informação, a primeira pessoa a informar algo disse que era longe, muito longe mas não sabia qual era a direção. A segunda disse com certeza que era  num lugar que passava trem, tinha uma música que falava de trem, onze horas e Jaçanã... achava que a música era de um certo Rui Barbosa, ou algo assim. Por fim alguém falou que era no sul de Minas, e essa foi a informação que mais se aproximou da verdade. Jaçanã na verdade fica na zona norte de São Paulo quase na divisa com Guarulhos, é tão longe que você esta a poucos metros do estado de Mina Gerais... longe para caralho, se me permitem usar uma palavra baixa.
Andamos, andamos e o ponteiro combustível indo lá para baixo... não sei de onde surgiu a placa, mas ela de repente estava lá ela na nossa frente: JAÇANÃ. Gritamos um: Urra! de alegria, mas deixamos passar a entrada e tivemos que fazer o retorno na marginal lá na frente, mas muito lá na frente... tinha tanta alça e placa no retorno que a gente ficou ali girando de um lado para o outro e quando conseguimos entrar novamente na pista estávamos indo na mesma direção de antes então resolvemos seguir e tentar achar o próximo retorno, de repente o próximo era mais simplificado, projeto de uma arquiteto com a mente mais desembaraçada, sei lá, numa dessas dava certo. Mas não vinha nenhuma placa mais nem com Retorno nem com Jaçanã, mas veio uma com Catumbí e alguém leu a placa em voz alta e o tio teve um treco.
- Catumbí, Catumbí... é isso, eu confundi... eu estou com muita dor de cabeça, eu sabia que era um nome parecido com Jaçanã, eu sabia...
- Entra naquela, olha a seta indicando Catumbí...
Entrei, entramos, tinha um lodo fininho sobre a pista e o carro ficou impossível de controlar, ia pro lado que queria, eu virava para um lado e ele ia para o outro, bateu no meio fio e voltou prá pista, mas voltou com as rodas tortas pela porra e passou a andar de pulinhos, parecia um cabritão...
- Para com isso dirige direito...
- Falta muito prá chegar no hospital?
- Tá perto tio, mas antes vamos ter que passar na casa da primaiada, agora o senhor precisa dizer o nome da rua... e pimba o carro rodou e bateu numa coisa de ferro, era um poste, nele tinha uma placa: Jaçanã/Retorno.
- Vai sí fuder, agora não quero mais...
Mas ouvimos um chiadinho, depois um chiado e por um fim um chiado forte, o vidro embaçou por fora e não era mais a febre o tio era o radiador que tinha furado...
- Puta que pariu, furou o radiador... e agora?
- Tá fácil é só enrolar alguma coisa ali na saída da mangueira que o vazamento para.
- Alguém tem alguma coisa ai?
Ninguém tinha nada, a unica alternativa era usar uma meia bem elástica.
- Quem tem uma meia?
Tava todo mundo de Havaiana, menos o tio, o tio tava de sapato e meia.
- Olha tio, chegou a sua hora de dar uma força, o senhor vai ter que entrar com uma meia ai na parada, porque a parada aqui ficou sinistra... certo tio?
- Na boa... já chegamos no Jaçanã?
- Não tio, nós estamos indo para o Catumbí...
- O hospital fica no Catumbí?
- Não tio, os primos moram no Catumbí... mas precisamos de sua meia, e precisamos agora tio, na real tio, tem que ser agora...
- Na boa, vocês me colocam na maca do hospital e eu entrego a meia...
- Não tio, o senhor não esta entendendo, o nosso carro furou o radiador, só vamos conseguir chegar na casa dos primos se o senhor emprestar a meia agora.
- Na boa... mas não dá prá vocês continuarem descalços, quem vai colocar a meia?
- Tio, não daria prô senhor entregar a meia sem ter que negociar tanto, na boa tio...
- Na boa... me coloca na maca e pode tirar a meia...
Só tinha uma saída, tiramos o tio de dentro do carro e deitamos ele sobre a capota...
- Pronto tio, o senhor já esta na maca, pode entregar a meia agora?
- Na boa... pode tirar, mas avisa a enfermeira que meu tipo sanguineo é O+, que eu sou alérgico a camarão e que eu arrebento a fuça dela se ela tentar me aplicar Benzetacil ( ou benzilpenicilina benzatina é um antibiótico utilizado para tratar infecções. É disponível  em forma de suspensão injetável  em 3 concentrações: 300.000 UI; 600.000 UI e 1.200.000 UI, que é a utilizada a partir da adolescência e na vida adulta, sendo que sua vida útil é de 21 anos ).
Não foi fácil mesmo assim tirar a meia dele. Ela estava firmemente colada no pé dele e o cheiro era horrível, as unhas dele então só perdiam para as rachaduras do calcanhar, uma imensa visão do inferno o pé do tio Zé. Mas por outro lado o estado lamentável da meia conferia a ela uam certa elasticidade que se mostrou de utilidade permanente no reparo do radiador, porque depois de bem afixada grudou de tal forma na mangueira de saída que nunca mais precisamos reparar aquele problema, que tremendo apego...
Mas continuávamos parados, o radiador tinha ficado quase vazio e só tínhamos agora uma saída: mijar dentro do radiador prá completar o nível. Ninguém ainda estava com vontade de mijar, mas era preciso, fiz uma palestra mostrando que alguns entravam com a meia, outros com as boas ideias e todos com o mijo e tinha que ter pontaria porque o buraco era pequeno. O primeiro que tentou colocar o pinto no buraco se lascou todo porque o buraco ainda estava quente e fez uma baita bolha na cabeça do pinto, porra isso deve doer muito, ali é uma parte muito sensível e dar uma queimada alí não é fácil, eu uma vez tinha usado aquele KY que esquenta e fiquei desesperado pensando que meu pinto ia pegar fogo e derreter, corri colocar ele debaixo da água mas não adiantou, o lubrificante ficava queimando muito mesmo debaixo da água, e eu pensando: Como alguém pode sentir tesão queimando o pinto? mas ai vimos que não tinha outra maneira tinha que mijar a uma certa distancia, meio devagar e com muita concentração.Proibi todo mundo de fazer qualquer gracinha porque se o cara começa a rir começa também a tremer e ai ia mijar tudo fora, fora que a urina ia enferrujar todo o motor do carro. Mijamos o possível, o tio se recusou a colaborar dizendo que já tinha suado muito com a febre e que estava desidratando, não nos demos por vencidos, cuspimos dentro, limpamos o suor com o dedo e fizemos pingar lá dentro, colocamos o resto de Novalgina e ainda assim não chegamos no nível, pedimos até prá uma pau-dágua que vinha atravessando a rua todo torto se ele dava uma força e mijava lá dentro prá gente, mas o cara nos chamou  de pervertidos e mandou a gente tomar no cú. Tínhamos que seguir, íamos abaixo do nível mesmo e pior a temperatura do radiador tinha subido muito com a mijaiada quente, tínhamos que ter sorte e pegar uma reta de frente, sem transito prá tomar muito vento de frente e isso tinha que ser feito rápido e fizemos.
Sentamos o pau no 147 prá esfriar o radiador e então ouvimos os gritos.
Tínhamos esquecido o tio Zé na capota do carro e ele gritava:
- Fecha o teto solar da ambulância, fecha o teto solar...
Recolhemos o tio, já passava da meia noite, a fome apertava, o sono apertava, o ponteiro do combustível despencava e por incrível que pareça a  unica coisa que estava funcionando bem no carro era o radiador.
No meio da escuridão, no meio do nada, sem rumo, sem saber até o que perguntar se aparecesse alguém, vimos uma luz fraquinha... era uma borracharia.
- Porra esses caras de borracharia sabem de tudo, conhecem todo mundo, lembra daquele borracheiro vesgo lá de Altinópolis, aquele que virou pastor de igreja mas era meio doidão, ele sabia de tudo sobre tudo, o cara era um enciclopédia, incrível como um cara tão ilustrado vivia uma vida tão simplória, ele só virou pastor porque teve problema de coluna de tanto trocar pneu de caminhão, daí seguiu carreira no ramo da fé, mas não por muito tempo, é que descobriram que a sabedoria dele não tinha muita consistência. Ele misturava passagens da Bíblia com informações daqueles almanaques de farmácia, do Sadol, lembra? e no meio do sermão ele começava falando de São Paulo aos Corintios e encaixava informações sobre época propicia prá pescar e período adequado prá semear repolho, além de incrementar a palestra com uma porrada de adivinhações que ele só revelava o resultado na última parte do sermão e ainda assim plantando bananeira, foi isso que entregou que ele confundia almanaque com Biblia.
Mas resolvemos trocar uma ideia com o borracheiro, nem sabíamos o que maios falar, íamos levar um lero e numa dessas rolava alguma informação relevante para o nosso problema em questão.
Foi um choque.
Entramos na borracharia e demos de cara com a Raquel Welch, a  nossa Raquel Welch ( nascida Jo Raquel Tejada, em Chicago no dia 5 de Setembro de 1940 e que em 1966 faria o filme " Um milhão de anos antes de Cristo  e tiraria a foto que nos alegrou solitariamente infinitas vezes, era como se ela fosse alguém de nossa família, e nosso poster tinha as marcas de todas essas homenagens que fizemos a ela, era inconfundível ).

O problema é que o borracheiro era uma cara forte prá caramba e muito pouco amigo, e estava com o nosso poster, e não tínhamos duvida de que era o nosso poster. Tomei coragem e resolvi falar:
- Olha amigo, estamos numa enrascada, é caso de vida ou morte, nosso tio esta chegando na hora de fazer a passagem...
O cara se sensibilizou e fez uma cara de pena que me cortou o coração.
- E nós precisamos achar a casa de nossos primos para que o tio se despida deles...
O cara fazia umas caras de tristeza que levariam qualquer ao pranto.
- Então nós acreditamos que o senhor e só o senhor possa nos ajudar, esta vendo este poster?
- É uma gostosa... é sua prima?
- Não senhor. Ela é a Raquel Welch e é a chave do enigma. Esse poster pode ficar com o senhor mas ele era nosso e nós o perdemos defronte a casa de nossos primos, então se o senhor fizer a gentileza de nós dizer como conseguiu o poster nós achamos os primos, ficamos imensamente gratos aos senhor, nosso tio se despede dos familiares e faz a passagem em paz e o senhor fica com o poster, e então?
- E então o quê?
- Então?
- Ãh?
- Onde conseguiu o poster?
- Ãh? O poster da Raquel... não lembro...
Ai meu cacete, só faltava o cara não lembrar...
Mas o cara foi legal com a gente fez um café na hora e serviu numas xícaras muito bonitas, fininhas, fininhas com um friso dourada e tão limpas que dava até medo de usar, eram todas meio rendadas e feitas na Hungria,  serviu numa bandeja com uma toalhinha branca de ofuscar a vista e ainda tinha a opção de dois tipos de adoçantes. Ele contou sem pressa uma boa parte da vida dele e de como havia chegado a se instalar ali naquele bairro e de quantas enchentes do Tietê havia enfrentado e dos dois cachorros que havia salvo na pior enchente de todas, mas isso já fazia muitos anos... que paciência do caralho prá ouvir tudo isso. Finalmente resolvemos desistir dele e continuar a busca, agradecemos e nos despedimos e quando já havíamos andado uns cem metros ele nos gritou algo...
- O que foi que o senhor disse?
- Ãh? Ah, que eles moram na rua de trás numa casa amarelo canário.
Puta que o pariu.
Não conseguimos entrar na primeira rua a direita porque era contra mão, a segunda também e a terceira era uma rua sem saída, resolvemos então virar a esquerda duas vezes e voltar quatro rua, cruzar e virar a esquerda novamente, mas a quarta rua na volta tb era contra mão e tivemos que avançar mais 3 porque a duas seguintes também eram sem saída, dai tínhamos que voltar agora mais três somadas as duas e mais uma virada mas já nao sabíamos mais se para a direita ou para a esquerda então resolvemos achar a borracharia novamente e o tio dizendo:
- A borracharia fica no Jaçanã,  a  borracharia fica no Jaçanã...
Um inferno, nem no começo do filme do resgate do Soldado Raião era tão confusa a situação.
Por fim não achávamos mais a borracharia e com isso também não acharíamos mais a rua de trás e nem a casa amarelo canário e nem o Eugênio.
Ninguém sabia indicar onde ficava a borracharia, estávamos perdidos para sempre.



quinta-feira, 20 de setembro de 2012

TIO ZÉ

Tio Zé enviuvou e andou meio só por algum tempo.
Um dia apareceu em casa e pediu prá levarmos ele até a casa de uns parentes distantes.
Na verdade distante era a casa dos parentes.
Fomos... entupido em um carro pequeno, num calor dos infernos sem saber direito onde ficava nosso destino... rodamos, rodamos muito e enfim paramos para pedir informação.
Perguntamos num  lugar onde tinha muita gente, na verdade numa estação de trem em Caieiras, sei lá, tinha uma barraca que vendia uns biscoitos de polvilho e uma perigueti tinha morrido atropelada lá quando atravessou a rua prá comprar biscoito sem olhar para os lados.
Ninguém soube informar porra nenhuma e a atenção toda era prá perigueti que jazia estirada semi nua no chão, um horror.
Rodamos muito mais, um calor ensurdecedor e a gente já nem prá casa podia voltar porque não tínhamos mais a menor ideia de como fazer isso, enfim... fudidos, completamente.
Os pneus do carro já estavam moles quando o tio falou que aquele lugar parecia familiar.
Incrível estávamos diante de um prédio decadente onde havia um night club ordinário e certamente um puteiro em anexo, que catso de familiar seria?????
Mas não rodamos muito mais e o tio ganhou certeza, estávamos não só no caminho certo como muito próximos de nosso destino final.
A fome já comia o estomago, a sede fazia arder os dedos do pé.
O tio prá distrair a gente e ganhar uns créditos pela enrascada que nos metera ia contando umas lorotas, uma mais grossa que a outra... uma delas a de estar passeando de bicicleta e ter cruzado com uma garota de topless numa estrada deserta... coitado, não sabia andar de bicicleta, alias nem a pé ele andava direito, ele vivia ralado de tanto cambalear sóbrio e se arrebentar naqueles muros chapiscados de tijolo baiano./
Enfim ele reconheceu a rua, é esta, pode ter certeza esta é a Rua Campos floridos, pode subir. Já de cara vimos que a rua se chamava Amarildo Barbosa, mas o tio disse que a rua podia ter mudado de nome com o passar dos anos e que o Amarildo era um antigo morador do bairro. Chute, só chutava...
Avistou a casa de longe: - Aquela da árvore grande na frente, é uma casa amarelo canário... não era, a casa era um verde cítrico de fazer torcer o umbigo... mas mesmo assim ele nos fez parar em frente.
Ninguém queria descer do carro e tocar a campainha, até porque íamos precisar de ajuda prá sair, além de entalados havíamos contraído um epidemia de câimbras... diz que tava dando isso por lá. Resolvemos chamar o SAMU, prá ajudar, mas o tio saiu do carro foi abrindo o portão e chamando pelo povo da casa.
Apareceram umas pessoas muito estranhas com umas caras mais estranhas ainda. O tio perguntou se não se lembravam dele e o povo ficou mais mudo que gelatina de framboesa.
Descemos prá dar apoio ao tio e prá um eventual resgate caso o povo dali resolvesse cobrir ele de porrada, mas o clima mudou pela primeira vez quando nos viram saindo do carro todos tortos e mancos... acho que não imaginaram que podia caber mais 6 pessoas num Fiat 147... nos olharam como se fossemos um bando de anões de circo prontos prá entrar em cena.
Fomos entrando também e notamos que dois deles pegaram nos celulares, ou iam atirar eles na gente ou iam chamar a policia ou reforços... tinha um velho gordo com um cuecão que só coçava o queixo e um pivete cheio de píercings com cara de personagem de manga... mas a segunda virada veio neste preciso momento lá do fundo da varanda no grito rouco de uma velha que eu julgava estar morta e sentada numa cadeira de vime toda esbugalhada tipo ninho de garça. Ela gritou: - Artur quanta saudades.
O povo da casa olhou prá ela, olhou prô tio, olhou prá gente.
O tio Zé avançou, passou destemidamente pelo povo e foi lá abraçar a velha, lágrimas rolaram.
Depois de uma hora conversando abraçados, o tio já duro de ficar tanto tempo com as costas arqueadas a velha ralhou com o povo prá eles terem mais educação e convidarem a gente prá entrar.
Imaginávamos ao sair de casa uma festa com churrasco e ainda nem mijar podíamos.
Entramos por um corredor polonês enquanto a vizinhança toda nos observava, nunca havia sentido a morte tão próxima de mim assim, deu prá sentir o bafo do cotovelo.
A sala era uma coisa deplorável... escura, móveis escuros, uma televisão de marca Invictus de caixote num canto, umas cortinas grossas e negras e umas cadeiras de jacaranda com uns estofados mijados de gato, úmidos e grudentos. Tivemos que sentar em 3 em cada cadeira, uma quininha de bunda para cada um.
Eramos observados tipo aquela cena da Branca de Neve no bosque, só víamos o branco dos olhos de um numero infinito de criaturas... a tv chiava, e o tio e a velha prá nosso desespero não entraram na sala e ficaram lá fora conversando. Uma hora no portão e mais uma hora e meia naquela caverna do dragão e nem uma palavra... um silêncio mortal, só o chiado da tv, o cheiro de mijo de gato e as trevas...
Eu pensava um plano para nos colocar fora dali, nada me ocorria, nisso alguém passou e fechou a porta que dava para a varanda e nossa unica rota de fuga... breu, breu total, nem a corrida de arroz da tv conseguia clarear nada... agora vamos morrer, eles vão nos esfaquear e enterrar os corpos...
Meu primo Eugênio pediu prá ir ao banheiro... caralho, como ele teve a ousadia de abrir a boca... em troca ouvimos: - Claro coração, venha comigo...
Alguém pegou o primo pela mão e o levou.
Acho que se passaram algumas horas e ele não voltava...
E o almoço, a que horas vão acender a churrasqueira? Quando vão liberar a cerveja gelada?
Alguém passou correndo por mim e me deu um baita esbarrão, era um par de peitos, peitos durinhos, peitos de uma adolescente... - Oi primo...
- OOOi, quero dizer oi...
Mas ela correu e se foi, minha unica oportunidade de salvação se fora, minha única amiga nesta face da terra se foi.
Escureceu, sim o que já era escuro escureceu e o tio entrou e disse:
- Então, eu sei que a conversa de vocês esta boa mas acho que esta na hora de irmos...
Porra, nem um cafezinho, nem a oferta de um cafezinho...
Ninguém pensou duas vezes, tateamos no escuro e fomos apertando as mãos de que encontrávamos e dizíamos: - Foi um prazer, foi um prazer, foi um prazer... alguns anos depois dessa experiência tentamos lembrar quantas mãos havíamos apertado cada um e concluímos que ou nós ficamos meia hora apertando nossas próprias mãos ou eram muitos mesmo do lado deles pois cada um acredita ter apertado a mão de pelo menos umas 40 pessoas, mas pode ter sido 10, ou 5, sei lá.
Saímos para a varanda e o Fiat estava estacionado no mesmo lugar mas virado no sentido oposto que deixamos, descobrimos que o rádio, o estepe, a capa do volante e uma imagem de Raquel Welch haviam sumido, depois notamos que o combustível também, mas pode ser que não, havíamos andado muito.
Lotamos o carro, os estômagos roncavam mas tínhamos uma estranha sensação de alívio e conforto, até parecia que o carro tinha ficado maior.
A velha acenou um adeus e gritou: Volte sempre Artur, volte sempre Orlando... Orlando? Ela sabia o meu nome... mas quem seria Artur?
O tio Zé disse prá gente não ligar que ela estava caduca e errava o nome dele o tempo todo.
Acenamos, o povo mal encarado e frio acenou também e o velho de cuecão só coçava o queixo.
Um puta transito na volta, colocamos uma gasolina ordinária prá completar o tanque e o carro voltou pipocando e morrendo o tempo todo... fomos parados pela polícia e não tínhamos os documentos em ordem, juntamos uns 46 paus e subornamos o guarda, um cara meio afeminado que dizia que não gostava de fazer aquilo, que só fazia prá aliviar o lado da gente... 4 horas depois estávamos em casa moídos e sem a mínima condição de encarar uma segunda feira de trabalho, onze e meia da noite... mas cadê o Eugênio?
Perdemos o Eugênio e a Raquel Welch numa só noite.



domingo, 16 de setembro de 2012

BANCO COXINHA S/A.

Marlene atendeu seu último cliente com uma fome cruel.
Trancou a gaveta de seu caixa e lamentou não poder encarar um feijoada naquela quarta-feira, teria que se esforçar e ficar só com uma coxinha.
Cruzou a rua rumo ao Boteco Rapidinho com a água já brotando na boca.
Pisou com o pé direito dentro do boteco e um rapaz meio ensebadinho falou prá ela com uma surpreendente voz autoritária e absolutamente impessoal:
- Não pode entrar com celular, nem com carteira, nem com chave... e essas pulseiras ai também não "pode"...
Marlene sem entender deu um passo atrás.
O rapaz completou, agora já com uma afirmação mais contextualizada dentro do campo pessoal:
- A senhora é a Dona Marlene do Banco Coxinha né?... então, bancário não pode entrar aqui no boteco com celular, nem com carteira, usando capacete, com mochila, guarda-chuva também pode não.
Marlene foi falar mas o ensebadinho completou muito mais ligeiro:
- A senhora vai ter que deixar tudo do lado de fora se quiser entrar aqui...
Marlene ficou com cara de bosta e não sabia se ria ou chorava, só conseguiu falar:
- Mas vocês não tem guarda volumes aqui, onde eu vou deixar...
O ensebadinho cortou fulminante:
- Não sei, e também bancário não pode usar o banheiro aqui não, já tá sabendo né? e a senhora tem que afastar um passo agora, tem que voltar prá calçada.
Nisso entra um eletricista carregando uma sacola de ferramentas e o ensebadinho nem toma conhecimento.
Marlene indignada então fala:
- Eu não vou entrar nessa porcaria...
O ensebadinho nem ouvia o que ela falava e não fazia conta alguma, só disse:
- A senhora vai ter que pagar R$ 14,70 por ter pisado no boteco e por ter usado o meu serviço de informações, mas essa taxa vale por 30 dias, fique tranquila...
- E você acha que eu vou pagar?
- Sei lá, se não pagar a gente manda seu nome prá Serasa, dá um passo prá trás que a senhora esta atrapalhando os outros clientes.
Entra uma senhora com um carrinho de feira e um rapaz com um skate.